kitschnet - mini-pratos ao balcão: Posteriori


17.2.14

Posteriori

O senhor que comigo espera pelo elevador tem o cabelo branco e usa-o para trás. Não é ainda branco. Amarelado. Aquilo que noutra pessoa me causaria repulsa nesta enternece. Consigo sentir um perfume antigo, de quem não se perfuma e apenas exala dignidade, um olor a madeira maciça que o tempo impregna em vez de corroer. A seu lado, o cabelo desalinhado, os braços gordos e as sandálias de borracha que exibo não impõem qualquer respeito. O senhor sorri de boca fechada, cordial mas sincero, enquanto esperamos, olhando discretamente para mim quando o elevador chega. O que tinha vindo antes estava cheio – de pessoas que não se tinham importado com a falta de oxigénio, com o contacto das peles húmidas do calor de Agosto, com o homem que comia um gelado. Este elevador, agora, está vazio, mas vejo que vai subir. O senhor convida-me a entrar primeiro – convite impresso em bom papel, simultaneamente suave e crespo ao toque, qual tecido – e, como vejo que a seta no exterior indica que vai subir quando quero descer, agradeço e lamento ter de recusar. Mas o senhor também vai descer e insiste, como quem insiste em servir-me mais um pouco de chá, que eu suba a bordo. Sorrio e entro, até porque as setas nos enganam. Estendo a mão para os botões, primo o que diz um e o que ordena às portas que se fechem, o que estas fazem, ainda que renitentemente. O senhor guarda um metro preciso de distância de mim, o suficiente para não ser demasiado próximo, o suficiente para não fingir que não estou ali. A ideal distância inter-humana.

Agora que já não estamos paralelos e sim a noventa graus um do outro, posso observá-lo melhor. Pasta de couro na mão e um jornal junto ao peito, camisa amarela clara, de Verão, e um blazer azul-escuro. Não olho para baixo, mas não é preciso. A pele dourada pelo sol e as entradas no sítio certo remetem para anos passados noutros continentes. Talvez tenha andado por Áfricas, pelas Índias. Terá partido para o Brasil em setenta e quatros? A delicada mise-en-scène, de que certamente nem se apercebe, sugere alta burguesia com tradição ou baixa aristocracia falida há muito. A sua maleabilidade nega que tenha sido um homem do regime, mas deve ter prosperado em novo. Arquitecto? Engenheiro? O nosso piso era o da livraria, o que confirma a impressão de cultura.

O elevador sobe mesmo. Surpreendido, fala comigo sem se voltar completamente, dizendo que ao menos estamos cá dentro. Conversa de circunstância, mas muito amável. Nesta altura, já o quero para avô. Duvido que me queira para neta, mas esse amor filial não correspondido só aumenta por isso, o que em psicologia deve ter um nome qualquer, certamente. Divãs à parte ou não, numa fracção de segundo imagino-o a levar-me à praia, a querer saber das minhas notas, a ler jornais no escritório fresco, cheio do cheiro a livros e madeira, o tal com que já trocou tantas moléculas a ponto de se confundirem e transportarem mutuamente. Viveria até tarde, deixar-me-ia a biblioteca depois de me deixar a mim, e só o faria quando eu estivesse casada, já com um tronco sólido a meu lado, que me amparasse aquando da sua queda. Teria muitas fotografias de nós juntos e saudades dos gelados que nos levava a comer.

No piso de cima, a porta abre-se e duas turistas orientais mostram-se confusas – não sabem se desce ou se sobe. O senhor responde-lhes em inglês que vai descer. Só pode, não há piso acima desse. A porta fecha-se. A porta volta a abrir-se. O senhor volta-se para mim e confidencia «que confusão», ao que anuo com um sorriso. Descemos. Como me perdi na imagem de nós na biblioteca, não ouço bem o que diz quando se revela perplexo ao constatar que a porta se volta a abrir, desta feita num outro andar, sem que seja o piso térreo, aquele onde ambos queremos sair. Percebo o que aconteceu e digo-lhe que voltámos ao piso inicial, que só agora iremos descer. Diz-me, apontado para os botões, que fomos nós que carregámos nos botões. Ele não carregou em botão algum, eu também não e as turistas muito menos. Aliás, e só depois reparo, parece que as duas se deixam ir à sorte para qualquer piso que lhes calhe. Digo que talvez, para não o embaraçar. Talvez porque intua o engano, corrige para: deve ter sido a memória, estas coisas às vezes têm memória.

Memória. Este caixão suspenso por cabos oleosos, comandado por um algoritmo misterioso, tem memória. Se não tem memória, tem-nos a nós. E, portanto, a nossa memória. Ainda que as minhas memórias sejam sobretudo as que não me pertencem. Como a deste meu querido avô, que comandou expedições em África, fez fortuna no Brasil, teve uma série de filhos, educados com mão firme e branda, amigos a sério, tempo para ler, reflectir e recordar. Um elevador com memória. Isto fez-me lembrar o espelho com personalidade que imaginara horas antes. (Numa loja de roupa interior, atrás do espelho, está um segurança chamado Lígio ou coisa parecida. Vê-me experimentar as coisas, a mim e a todas as que por lá passam. Assiste aos desesperos dos tamanhos errados, os olhares furtivos para a cintura, as coxas, o penteado que se compõe e a borbulha que se estuda. O pobre segurança não tem outro remédio senão compadecer-se infinitamente das mulheres, de todas as mulheres, e de as amar a todas à distância não sem uma certa tristeza, porque do lado de lá do espelho vê-lhes, muito além das curvas – que se vão tornando um pouco todas as mesmas curvas –, a angústia do lado de lá dos olhos.)

Chegados ao último piso, deixamos sair as turistas e digo-lhe agora sim, a rua, apenas para trocar uma última palavra e para lhe confirmar onde estamos. Sorri sereno, compreendendo tudo. 

Como saio à sua frente, sou obrigada a mostrar-lhe o andar desajeitado, mais carne do que queria, o saco que levo, as sandálias de borracha. Bastante mais à frente, ao descer umas escadas, olhei para trás e lá estava ele, um mastro quinhentista, uma coluna jónica. Por instantes pensei em ir ao seu encontro e perguntar-lhe se não queria lanchar comigo. Jamais o faria, mas pensei nisso. Não era preciso dizermos mais nada, bastava começarmos a conversar e recuperaríamos o tempo perdido. Seria a melhor neta do mundo, eu.

posted by pimpinelle