kitschnet - mini-pratos ao balcão: Começar. Devagar.


21.4.14

Começar. Devagar.
Começar a ler um livro, a ver um filme, a ouvir uma música. Há as artes súbitas como um quadro, um templo, ainda que se vejam devagar. E há as que se vão desenrolando gradualmente nesse devagar. Porque o devagar de um quadro ou de uma catedral vem vindo depois. E eu falo do começar. Estou suspenso do que se vai revelar, ver, ouvir no que não é senão anúncio como o começo do dia. Ter todas as hipóteses do possível, ser Deus antes de o ser, em nós ou no que em nós o vai ser. Nesse começar não acontece quase nada, para ser só expectativa de acontecer tudo. Lêem-se as primeiras palavras, os primeiros indícios do que vai acontecer em grandeza e plenitude. Ou olha-se uma criança e interrogamo-nos sobre o génio possível, ou o herói possível, mesmo o possível criminoso. A dimensão do possível é a do máximo que se pode imaginar, o não ser ainda é o ser já tudo a ser. Começar. O Deus que ergueu a mão. O absoluto do que o é no nosso imaginar. A suspensão de nós para a aparição que vai dar-se. O momento infinito da promessa. O absoluto do terrível e da ameaça. O instante da revelação que vai abrir-se. O encantamento e o medo. A anunciação do destino.

Vergílio Ferreira, Pensar, p. 94.

posted by pimpinelle