Entre quatro paredes, estamos quase sempre esquecidos dos animais do mundo. Podemos ter um cão aos pés, um gato no colo, mas nunca pensamos no elefante indiano com uma dor de dentes, no beija-flor desorientado na Amazónia, na girafa que acabou de nascer, no aligátor com fome no pântano americano, no urso polar que se afoga, no insecto que morre e que leva a espécie consigo. Também nunca pensamos nas espécies mais próximas, a barata, a mosca, o rato, a não ser que nos incomodem, e menos ainda nas indiferentes, como o peixe de rio que não comemos, os vinte mil pardais por quilómetro cúbico de céu. De vez em quando penso no burro que carrega, no boi que puxa, na vaca que pasta entre ordenhas. Biólogos e pastores pensarão nos seus exemplares, claro. Mas dou por mim a pensar neles todos sem razão. Só porque coexistimos. Se calhar rezar é isto.
No metro, vejo uma rapariga da Europa de Leste, imediatamente identificável pela fisionomia do rosto. Uma Natalya que, encorpada e de cabelo curto, seria um Yuri quase sem ser preciso mudar mais nada. E olhando para ela ocorre-me que já vi tantas e tantos tão parecidos que parecem clonados e como algures lá para trás houve um homem muito poderoso, ou tido por muito bonito, rico ou forte, talvez um grande sedutor ou divertido, embora isso seja menos provável, que se fartou de semear a sua semente fortíssima com grande sucesso. Quem terá sido? E, no metro, em 2017, terá a sua descendente mais alguma marca da sua ascendência além das visíveis?
Uma pessoa tem de passar o tempo de alguma maneira.
«Digo-o a sério: parece-me justo que a mulher do escritor possua de alguma forma o escritor porque, entre ambos, construíram um animal simbiótico. O que não significa que todas as mulheres que pastoreiam um literato sejam pessoas maravilhosas; de facto, algumas dessas mulheres superlativas são senhoras pavorosas. Mas nunca é menos pavoroso o cavalheiro que parasitam, que se aproveita do facto e o fomenta.»
Rosa Montero, A Louca da Casa
O que décadas de concursos de talentos na televisão nos mostram é que não há falta de gente com boa voz para cantar. Aliás, é algo absolutamente banal. De crianças de quatro anos a velhotas, milhares conseguem-no.
A Fashion TV, de tanto entupir ojolhos com modelos, também revela a sua linha de montagem, em plena luz do dia. Leve cem pelo preço de uma, mulheres bonitas é o que não falta, há sempre mais de onde estas vieram, aliás até me estão aqui a ocupar espaço, fique com quantas quiser, que nem damos pela diferença, tal a abundância e a parecença entre elas.